Velha língua e novilíngua
Na minha opinião, o 1984 não é um excelente livro. Não acho que o Orwell fosse um escritor brilhante, pelo menos em narrativas extenas. No entanto, o Orwell era muito bom a criar cenários. E o cenário de distopia que cria é plausível acima de tudo por duas razões: o doublethink; e a novilíngua. O doublethink fica para uma próxima: hoje é dia de línguas.
Nos últimos tempos, o pessoal de direita (há outros, mas especialmente o pessoal de direita) tem reclamado a novilíngua como um ataque à coisa mais perigosa que conseguem imaginar: pessoas trans (isto é semi-irónico). Pronomes neutros são o pesadelo deste tipo de pessoa, que reclama que o "woke" deep-state está a tentar alterar a linguagem para convencer as pessoas que as pessoas trans existem.
O argumento é simples: pronomes pessoais de terceira pessoa neutros não existem (reduzindo esta discussão à língua portuguesa). Então, a tentativa consciente de introduzir novas palavras só pode significar uma tentativa de adulterar a linguagem e, através dela, alterar a própria estrutura social.
E no geral, acho que estão corretos neste aspecto. A existência de pessoas trans não era considerada até há uns anos (embora a existência de pessoas trans tenha uma história maior), e portanto, se queremos uma sociedade minimanente inclusiva, penso que essa reestruturação social é necessária. A principal diferença é que os conservadores consideram esta reestruturação como indesejável, ou até moralmente condenável.
Penso que a perspectiva que eles têm da linguagem tem um papel significativo nessa posição. (Deixo aqui o caveat que opinião advém puramente da minha observação pessoal que, apesar de ser de dimensão considerável - vivo no Norte e navego no twitter ponto com- não garante nenhuma representatividade real). Esse pessoal parece olhar para a linguagem como uma formação natural, que transcende as condições históricas e que apenas pode evoluir também de forma natural. Ou seja, qualquer tentativa consciente de alterar a linguagem é uma perversão dessa pureza natural, e portanto condenável. O caso dos pronomes neutros é exemplar porque este efeito é amplificado por todas as consequências de admitir a sua existência.
Mas não é caso único. Quando se fala de racismo, muitos são rápidos a negar que uma sociedade possa ser racista: racismo é um problema individual, um defeito, um preconceito baseado em etnia que uma pessoa tem; logo, racismo em termos estruturais nem sequer faz sentido, e esta alteração de significado da palavra é também uma perversão politicamente motivada.
E portanto, temos a acusação: o Estado está a criar uma novilíngua para poder dominar a seu bel-prazer, com a sua agenda "woke".
Eu discordo.
A novilíngua é bem mais interessante que o Governo alterar o dicionário. Aliás, eu diria que isso é o aspecto menos interessante do fenómeno. A parte mais interessante, para mim, é como a criação da novilíngua funciona: não é a criação de palavras novas que é o problema; a novilíngua é a destruição de palavras, a redução do vocabulário, a simplificação da comunicação. Qual o objectivo? Impedir a descrição de sentimentos de revolta, a comunicação de fenómenos complexos, a moldagem dos pensamentos de acordo com um número restrito de palavras que não permite qualquer idealização de desacordo.
E pensando assim, é isto que está a acontecer? São os pronomes neutros uma novilíngua? Não, certo? Não se apaga os pronomes normais do dicionário, procura-se acrescentar e, desta forma, enriquecer as ferramentas de comunicação à nossa disposição. Será que dizer que género é diferente de sexo biológico é um processo autoritário para impedir a discussão? Novamente, não, aliás, é precisamente o contrário. Esta distinção permite uma discussão muito mais complexa sobre um assunto que necessita dessa discussão complexa.
A linguagem, para os progressivos, é, acima de tudo, uma construção social (não negando que haja fatores naturais presentes). Depende das condições históricas e sócio-económicas onde as linguagens surgiram, da religião, do conhecimento disponível à sociedade. A evolução da mesma pode ocorrer naturalmente, mas nós temos capacidade de adaptá-la conscientemente às nossas necessidades de comunicação. E a novilíngua é condenável não porque é uma perversão à ordem natural, mas porque visa impedir dissidência e nuance nas discussões.
Mas eu vou mais longe: atualmente, a política liberal (novamente, estes termos aplicados no contexto político português, onde se cruza fortemente com os conservadores) centra-se em criar uma novilíngua: apagar qualquer tipo de considerações estruturais da discussão; reduzir ideias inteiras às suas caricaturas mais básicas de forma a poder desprezá-las logo à partida. Por outro lado, a nossa direita mais conservadora apela constamente à linguagem para atacar os grupos mais marginalizados (como já acima referido em relação aos ataques à existência de pessoas trans).
Claro que isto não é de forma alguma absoluto, haverá (talvez muitos) conservadores com ideias diferentes, e certamente há um monte de progressistas sem qualquer tipo de pensamento crítico, mas é o que apanhei da minha vida, de interagir acima de tudo com os primeiros, e de me considerar parte dos segundos.
A linguagem é central à política. E a novilíngua é uma arma forte no arsenal dos totalitários dos nossos dias, dos fascistas aos mais acérrimos neoliberais. Ganhar consciência da forma como comunicamos atualmente e de como iremos comunicar amanhã é essencial para qualquer movimento políticos progressista.
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